sábado, 16 de agosto de 2014

O Bar Exterminador




Um dia, cansada do dia exaustivo e cheia de sede, procurou o primeiro bar que encontrara caras mais receptivas e sentou. Sentou como se rainha fosse. Em seu trono de plástico rouge, beijou seus braços com os da cadeira e assumiu um sorriso escondido de satisfação. A respiração ofegante, os pés a arder em brasa e a puta da sede. Que sede sentia.

Por alguns momentos apenas ficou ali prostrada, sem mexer um músculo. Não se atreveria a quebrar um momento tão bonito. Em plena atenção, ali ficou respirando o ar quente de um dia estupidamente seco. Seco. Lembrou-se da sede que grudava a língua no céu da boca e em seguida lhe veio o barulho incessante da cidade que saía do expediente. O garçom veio e o pedido fora atendido.

  Enquanto sentia uma gota indiscreta de suor descer seu pescoço rumo costas abaixo, um homem de aparência magra e doentia pousou uma garrafa vestida de noiva em sua frente. Abriu-a com o abridor que carregava preso em seu avental por um barbante já encardido e já ia derramando aquele líquido de ouro num copo americano embaçado, quando abruptamente parou o garçom e pediu para que deixasse a garrafa ali. Ela mesma se serviria. 

Sem demostrar grandes reações o homem saiu e ela pode ficar contemplando aquela noiva sem véu em sua frente. Apesar da sede que lhe grudava os lábios, contemplar a fonte de sua saciedade, lhe dava uma imensidão incrível. Não precisava mais correr, seus pés estavam salvos da caminhada, seu corpo relaxava cada vez mais e o problema da puta da sede já estava com a solução em sua frente. Agora era só respirar e sentir o prazer do descanso.

Antes que pudesse encher seu copo, um conhecido passou e a gritou, abriu os olhos assustadas, mas logo que viu Omar, abriu um sorriso sacana e lhe chamou para sentar. Pediu outro copo e juntos saciaram a sede com a noiva contemplada em plena satisfação. Ao fim de três garrafas, a mesa já estava cheia e com a chegada do casal da antiga vinte e três, outra mesa fora necessária para que todos fossem acomodados.

Mas, como tudo na vida tem seu fim, as pessoas aos poucos foram pagando suas metades e seguindo seus rumos. Uns ainda tinham ônibus a pegar, outros precisavam trabalhar ou estudar e poucos tinham que voltar para suas esposas ou maridos. Mas ela não, ela não tinha para onde voltar. A casa vazia estava arrumada e no dia seguinte haveria de voltar para aquele mesmo local, pois trabalhava ali perto. Por isso, ficou. Foi bebendo cerveja até o garçom doentio lhe fechar a conta, o bar estava fechado e ela nem se apercebera.

Perguntou se podia ficar sentada na cadeira do lado de fora até terminar a última garrafa e tentar matar sua sede que parecia agora, a persegui-la. O garçom não fez cara de sim, nem de não. Colocou a cadeira na rua e desceu a porta de correr sem muitos pormenores. Ela voltou a se sentar e começou a mexer os dedos dos pés. Tinha lido que isso melhorava a dor.  E foi assim, mexendo os dedinhos dos pés espremidos dentro do sapato, que adormeceu naquela noite abafada e de bocaseca.

Sentiu de repente, que o pescoço lhe doía, mas ainda estava alocada entre os sonhos e a realidade que lhe acordava com uma luz quente que lhe invadia o olhar. Fez-se o dia. Foi se espreguiçando, voltou a mexer os dedinhos e aos poucos foi entendendo o que estava acontecendo.  Olhou no relógio e percebeu que estava atrasada para o trabalho. Se corresse, ainda chegaria a tempo. Mas seus pés ainda latejavam e a sede havia voltado. Já que estava sentada no bar, resolveu ficar ali e esperar que ele abrisse para poder mata-la e correr para suas obrigações.

Passou um colega que seguia para o trabalho e parou. Estava adiantado e podia lhe fazer companhia por alguns minutos. Deu-lhe a dica de colocar os pés pra cima, com a ajuda de uma outra cadeira. Aliviaria as dores dos pés e das pernas e ainda era bom para ativar a circulação. Dito isso seguiu seu rumo e assim que o bar abriu pediu ao garçom que parecia ainda mais doente, para arrumar outra cadeira e outra cerveja gelada que lhe matasse a sede.  Não poderia trabalhar sem antes estar em condições para tal. 

Serviu-se da cerveja, tirou o sapato por uns instantes e foi ao banheiro se lavar. Lavou o rosto com a refrescante água da pia bege, molhou a nuca, os pulsos e o antebraço. Que frescor lhe escorria pelos membros. Com auxílio de sua nécessaire, passou desodorante, fez sua higiene bucal impecável e retocou o hidratante e o rímel. Já se sentia renovada. Voltou a sua cadeira/trono, calçou os sapatos e voltou à sua cerveja. O sorriso havia lhe voltado aos lábios e agora apreciava os raios de sol da primeira parte da manhã. Tudo parecia tão verde e brilhante. Tinha arco-íris no ar.

Pela hora, resolveu ir ao trabalho logo após almoçasse. Com tanta cerveja e uma noite dormida no relento era necessário uma refeição equilibrada para continuar o batidão. Enquanto a hora da merenda não chegava, entreteu-se com alguns bêbados matinais e com os amigos que passavam na velha avenida central. Leu um pedaço de um livro onde guias espirituais, filósofos e grandes pensadores falavam sobre a vida e escreveu algumas palavras em seu bloquinho de capa de chita azul.

A hora do almoço foi chegando e aos poucos o bar foi se enchendo de trabalhadores e estudantes que não tinham como almoçar em casa. Mais uma vez a mesa se encheu de amigos e colegas que paravam ali para comer e fazer uma sesta. O papo foi divertido e a comida estava boa. Mas aos poucos as pessoas pagavam suas comandas e iam-se embora para seus compromissos. Afinal a vida dos dias de hoje era corrida para todos.

Com os pés aparentemente inchados e a boca ainda insistindo em ficar seca, depois do almoço e da sesta ela percebera que ficara tarde para trabalhar e resolveu tirar uma soneca, com os pés para cima, para ver a circulação ativava e seus pés melhorassem nesse meio tempo, possibilitando que ela fosse para cansa descansar, mesmo por que não poderia mais faltar no trabalho, sua carteira não era assinada e não havia seguranças para ela.

Aninhou-se entre as cadeiras que o garçom apático lhe cedeu e dormiu profundamente na tarde fresca que corria mansa. Ao acordar percebera que uma leve manta lhe cobria o corpo mirrado. A tarde chegara fria e a pegara desprevenida. Antes que voltasse do sono profundo, sua cerveja vestida de noiva já estava aberta em cima da mesa, a espera que fosse servida. O garçom desejou que aquela pudesse ser a cerveja que matasse sua sede. Foi a primeira vez que ouvira sua voz, porém, ainda não vira nenhuma expressão em sua face.

Pouco apouco os dias foram passando e ela ali ia ficando. Pedia aos amigos que passavam que fossem a sua casa lhe buscar roupas, comida e abrigo. Dava o cartão do banco a outro e pedia que lhe sacasse dinheiro. Os que iam a sua casa pegavam as contas e o que iam ao pagam, faziam o favor de também paga-las. Como não estava usando o apartamento, relocou para o casal da vinte e três que descobriram estar grávidos e precisavam de um lugar maior. O garçom comprou até um organizador de plástico para que ela colocasse seus objetos pessoais e deixou no depósito do bar, bem como um colchão e um sapeca negrin que usava quando os fornecedores só podiam entregar as mercadorias de madrugada.

Pouco a pouco foi ajudando nas tarefas do bar. Como começou a dormir no depósito passou a receber os fornecedores noturnos e fazer o balanço das mercadorias. Mais adiante passou a cuidar do bar depois das vinte e uma horas e aos poucos ia cobrindo o garçom doentio, que veio a descobrir mais tarde, tomara as rédeas do estabelecimento, depois que o antigo dono desapareceu e ninguém reclamou o bar.

Nessa época, seus pés já estavam melhores, porém sua sede persistia a todo custo. Nem água, isotônicos ou a cerveja mais gelada do estabelecimento a faziam parar. Tinha vezes que um desespero lhe corria o sangue, mas sempre havia uma noiva para amenizar sua secura e lhe devolver algumas faculdades mentais. Nessa época, começou a reparar que nunca via o garçom bebendo nenhum tipo de líquido e começou a o seguir para ver se confirmava sua suspeita. Dito e feito. O homem doentio não ingeria líquidos.

Seus amigos e colegas pararam um pouco de aparecer. Uns casaram, outros mudaram de cidade, de emprego, de bairro e uma nova gama de caras começou a frequentar a bar. Aos poucos, não conhecia mais ninguém e como sua cadeira de plástico rouge há muito havia quebrado, passava agora suas horas a escorar no balcão, esperando que algum freguês acenasse. Já não bebia mais sua cerveja gelada, pois de nada adiantava para matar a sede que sentia. Começou a emagrecer e sua pele ficou com um aspecto amarelado pardo. Seus cabelos caíram um pouco e por isso agora só os deixava preso dentro da touca de redinhas que precisava usar. Já não sorria e suas expressões já não diziam coisa alguma.

O garçom doentio ficava cada vez menos no bar e um dia desapareceu. Nessa época o bar corria automaticamente e só o sapeca negrin precisou ser renovado por outro mais novo, após tanto uso. Seus pés ainda inchavam de vez ou outra, mas nessas horas sempre se lembrava de tê-los para cima.

Passava os dias atrás do balcão, cada dia mais magra, cada dia mais doente, cada dia com mais sede. Passava o dia a olhar o cruzamento a sua frente e a saciar a sede de quem tinha pouca sede.

Foi quando ele apareceu ofegante e com o rosto vermelho de um dia de cão. Foi quando sentou majestosamente numa cadeira de plástico que um dia fora vermelha. Foi quando colocou seus pés para cima na cadeira a sua frente e começou a mexer os dedos dos pés, dentro dos sapatos. Foi quando ela soube. Sem mesmo esperar o pedido do freguês, pegou sua cerveja mais gelada e a colocou em sua frente, junto com um copo americano embaçado. Foi quando abriu a cerveja, mas não a serviu. Foi quando fora para trás do balcão a olhar o cruzamento e a esperar.

Ele olhou a garrafa vestida de noiva e a contemplou em plena atenção. Serviu-se e ali ficou a assumir um sorriso escondido. Encontrou alguns amigos e pediu para passar a noite na cadeira, na calçada, pois estava muito cansado. Ela olhou-o sem expressão e rolou a porta do porta a baixo sem grandes cerimônias. Do lado de fora ele termina sua cerveja, quase cochilando de cansaço. Do lado de dentro ela já arrumava o colchão do depósito e o sapeca negrin para seu sucessor. Um sorriso nos lábios desatrofiou os músculos de sua face e num suspiro de dor e alegria sorriu e disse a si mesma, que estava quase na hora de saciar sua sede para sempre.