Um dia, cansada do dia exaustivo e cheia de sede, procurou o primeiro bar que encontrara caras mais receptivas e sentou. Sentou como se rainha fosse. Em seu trono de plástico rouge, beijou seus braços com os da cadeira e assumiu um sorriso escondido de satisfação. A respiração ofegante, os pés a arder em brasa e a puta da sede. Que sede sentia.
Por alguns momentos apenas ficou
ali prostrada, sem mexer um músculo. Não se atreveria a quebrar um momento tão
bonito. Em plena atenção, ali ficou respirando o ar quente de um dia
estupidamente seco. Seco. Lembrou-se da sede que grudava a língua no céu da
boca e em seguida lhe veio o barulho incessante da cidade que saía do
expediente. O garçom veio e o pedido fora atendido.
Enquanto sentia uma gota indiscreta de suor descer seu pescoço rumo
costas abaixo, um homem de aparência magra e doentia pousou uma garrafa vestida
de noiva em sua frente. Abriu-a com o abridor que carregava preso em seu
avental por um barbante já encardido e já ia derramando aquele líquido de ouro
num copo americano embaçado, quando abruptamente parou o garçom e pediu para
que deixasse a garrafa ali. Ela mesma se serviria.
Sem demostrar grandes reações o
homem saiu e ela pode ficar contemplando aquela noiva sem véu em sua frente.
Apesar da sede que lhe grudava os lábios, contemplar a fonte de sua saciedade,
lhe dava uma imensidão incrível. Não precisava mais correr, seus pés estavam
salvos da caminhada, seu corpo relaxava cada vez mais e o problema da puta da
sede já estava com a solução em sua frente. Agora era só respirar e sentir o
prazer do descanso.
Antes que pudesse encher seu copo,
um conhecido passou e a gritou, abriu os olhos assustadas, mas logo que viu
Omar, abriu um sorriso sacana e lhe chamou para sentar. Pediu outro copo e
juntos saciaram a sede com a noiva contemplada em plena satisfação. Ao fim de
três garrafas, a mesa já estava cheia e com a chegada do casal da antiga vinte
e três, outra mesa fora necessária para que todos fossem acomodados.
Mas, como tudo na vida tem seu fim,
as pessoas aos poucos foram pagando suas metades e seguindo seus rumos. Uns
ainda tinham ônibus a pegar, outros precisavam trabalhar ou estudar e poucos
tinham que voltar para suas esposas ou maridos. Mas ela não, ela não tinha para
onde voltar. A casa vazia estava arrumada e no dia seguinte haveria de voltar
para aquele mesmo local, pois trabalhava ali perto. Por isso, ficou. Foi
bebendo cerveja até o garçom doentio lhe fechar a conta, o bar estava fechado e
ela nem se apercebera.
Perguntou se podia ficar sentada na
cadeira do lado de fora até terminar a última garrafa e tentar matar sua sede
que parecia agora, a persegui-la. O garçom não fez cara de sim, nem de não.
Colocou a cadeira na rua e desceu a porta de correr sem muitos pormenores. Ela
voltou a se sentar e começou a mexer os dedos dos pés. Tinha lido que isso
melhorava a dor. E foi assim, mexendo os
dedinhos dos pés espremidos dentro do sapato, que adormeceu naquela noite
abafada e de bocaseca.
Sentiu de repente, que o pescoço
lhe doía, mas ainda estava alocada entre os sonhos e a realidade que lhe
acordava com uma luz quente que lhe invadia o olhar. Fez-se o dia. Foi se
espreguiçando, voltou a mexer os dedinhos e aos poucos foi entendendo o que
estava acontecendo. Olhou no relógio e
percebeu que estava atrasada para o trabalho. Se corresse, ainda chegaria a
tempo. Mas seus pés ainda latejavam e a sede havia voltado. Já que estava
sentada no bar, resolveu ficar ali e esperar que ele abrisse para poder mata-la
e correr para suas obrigações.
Passou um colega que seguia para o
trabalho e parou. Estava adiantado e podia lhe fazer companhia por alguns
minutos. Deu-lhe a dica de colocar os pés pra cima, com a ajuda de uma outra
cadeira. Aliviaria as dores dos pés e das pernas e ainda era bom para ativar a
circulação. Dito isso seguiu seu rumo e assim que o bar abriu pediu ao garçom
que parecia ainda mais doente, para arrumar outra cadeira e outra cerveja
gelada que lhe matasse a sede. Não
poderia trabalhar sem antes estar em condições para tal.
Serviu-se da cerveja, tirou o
sapato por uns instantes e foi ao banheiro se lavar. Lavou o rosto com a
refrescante água da pia bege, molhou a nuca, os pulsos e o antebraço. Que
frescor lhe escorria pelos membros. Com auxílio de sua nécessaire, passou
desodorante, fez sua higiene bucal impecável e retocou o hidratante e o rímel.
Já se sentia renovada. Voltou a sua cadeira/trono, calçou os sapatos e voltou à
sua cerveja. O sorriso havia lhe voltado aos lábios e agora apreciava os raios
de sol da primeira parte da manhã. Tudo parecia tão verde e brilhante. Tinha
arco-íris no ar.
Pela hora, resolveu ir ao trabalho
logo após almoçasse. Com tanta cerveja e uma noite dormida no relento era
necessário uma refeição equilibrada para continuar o batidão. Enquanto a hora
da merenda não chegava, entreteu-se com alguns bêbados matinais e com os amigos
que passavam na velha avenida central. Leu um pedaço de um livro onde guias
espirituais, filósofos e grandes pensadores falavam sobre a vida e escreveu
algumas palavras em seu bloquinho de capa de chita azul.
A hora do almoço foi chegando e aos
poucos o bar foi se enchendo de trabalhadores e estudantes que não tinham como
almoçar em casa. Mais uma vez a mesa se encheu de amigos e colegas que paravam
ali para comer e fazer uma sesta. O papo foi divertido e a comida estava boa.
Mas aos poucos as pessoas pagavam suas comandas e iam-se embora para seus
compromissos. Afinal a vida dos dias de hoje era corrida para todos.
Com os pés aparentemente inchados e
a boca ainda insistindo em ficar seca, depois do almoço e da sesta ela
percebera que ficara tarde para trabalhar e resolveu tirar uma soneca, com os
pés para cima, para ver a circulação ativava e seus pés melhorassem nesse meio
tempo, possibilitando que ela fosse para cansa descansar, mesmo por que não poderia
mais faltar no trabalho, sua carteira não era assinada e não havia seguranças
para ela.
Aninhou-se entre as cadeiras que o
garçom apático lhe cedeu e dormiu profundamente na tarde fresca que corria
mansa. Ao acordar percebera que uma leve manta lhe cobria o corpo mirrado. A
tarde chegara fria e a pegara desprevenida. Antes que voltasse do sono
profundo, sua cerveja vestida de noiva já estava aberta em cima da mesa, a
espera que fosse servida. O garçom desejou que aquela pudesse ser a cerveja que
matasse sua sede. Foi a primeira vez que ouvira sua voz, porém, ainda não vira
nenhuma expressão em sua face.
Pouco apouco os dias foram passando
e ela ali ia ficando. Pedia aos amigos que passavam que fossem a sua casa lhe
buscar roupas, comida e abrigo. Dava o cartão do banco a outro e pedia que lhe
sacasse dinheiro. Os que iam a sua casa pegavam as contas e o que iam ao pagam,
faziam o favor de também paga-las. Como não estava usando o apartamento,
relocou para o casal da vinte e três que descobriram estar grávidos e
precisavam de um lugar maior. O garçom comprou até um organizador de plástico
para que ela colocasse seus objetos pessoais e deixou no depósito do bar, bem
como um colchão e um sapeca negrin que usava quando os fornecedores só podiam
entregar as mercadorias de madrugada.
Pouco a pouco foi ajudando nas
tarefas do bar. Como começou a dormir no depósito passou a receber os
fornecedores noturnos e fazer o balanço das mercadorias. Mais adiante passou a
cuidar do bar depois das vinte e uma horas e aos poucos ia cobrindo o garçom
doentio, que veio a descobrir mais tarde, tomara as rédeas do estabelecimento,
depois que o antigo dono desapareceu e ninguém reclamou o bar.
Nessa época, seus pés já estavam
melhores, porém sua sede persistia a todo custo. Nem água, isotônicos ou a
cerveja mais gelada do estabelecimento a faziam parar. Tinha vezes que um
desespero lhe corria o sangue, mas sempre havia uma noiva para amenizar sua
secura e lhe devolver algumas faculdades mentais. Nessa época, começou a
reparar que nunca via o garçom bebendo nenhum tipo de líquido e começou a o
seguir para ver se confirmava sua suspeita. Dito e feito. O homem doentio não
ingeria líquidos.
Seus amigos e colegas pararam um
pouco de aparecer. Uns casaram, outros mudaram de cidade, de emprego, de bairro
e uma nova gama de caras começou a frequentar a bar. Aos poucos, não conhecia
mais ninguém e como sua cadeira de plástico rouge há muito havia quebrado,
passava agora suas horas a escorar no balcão, esperando que algum freguês
acenasse. Já não bebia mais sua cerveja gelada, pois de nada adiantava para
matar a sede que sentia. Começou a emagrecer e sua pele ficou com um aspecto
amarelado pardo. Seus cabelos caíram um pouco e por isso agora só os deixava
preso dentro da touca de redinhas que precisava usar. Já não sorria e suas
expressões já não diziam coisa alguma.
O garçom doentio ficava cada vez
menos no bar e um dia desapareceu. Nessa época o bar corria automaticamente e
só o sapeca negrin precisou ser renovado por outro mais novo, após tanto uso.
Seus pés ainda inchavam de vez ou outra, mas nessas horas sempre se lembrava de
tê-los para cima.
Passava os dias atrás do balcão,
cada dia mais magra, cada dia mais doente, cada dia com mais sede. Passava o
dia a olhar o cruzamento a sua frente e a saciar a sede de quem tinha pouca
sede.
Foi quando ele apareceu ofegante e
com o rosto vermelho de um dia de cão. Foi quando sentou majestosamente numa
cadeira de plástico que um dia fora vermelha. Foi quando colocou seus pés para
cima na cadeira a sua frente e começou a mexer os dedos dos pés, dentro dos
sapatos. Foi quando ela soube. Sem mesmo esperar o pedido do freguês, pegou sua
cerveja mais gelada e a colocou em sua frente, junto com um copo americano
embaçado. Foi quando abriu a cerveja, mas não a serviu. Foi quando fora para
trás do balcão a olhar o cruzamento e a esperar.
Ele olhou a garrafa vestida de
noiva e a contemplou em plena atenção. Serviu-se e ali ficou a assumir um
sorriso escondido. Encontrou alguns amigos e pediu para passar a noite na
cadeira, na calçada, pois estava muito cansado. Ela olhou-o sem expressão e
rolou a porta do porta a baixo sem grandes cerimônias. Do lado de fora ele
termina sua cerveja, quase cochilando de cansaço. Do lado de dentro ela já
arrumava o colchão do depósito e o sapeca negrin para seu sucessor. Um sorriso
nos lábios desatrofiou os músculos de sua face e num suspiro de dor e alegria
sorriu e disse a si mesma, que estava quase na hora de saciar sua sede para
sempre.