Ando
com raiva de você. Desculpe-me. Mas é que quando eu comecei a olhar para nossa
história pelo lado de fora eu me senti uma tábua de tão ingênua que fui com
minha devoção por você. Senti-me aquela garotinha do colégio que se apaixona
pelo professor, achando que ele a ama só por que seu sorriso parece feito para
ela. Senti-me ingênua por te amar tanto, por te querer tanto, por querer te ter
para sempre. Senti-me ingênua por ter
continuado, por tanto tempo, ainda querendo ter um cachorro feio contigo.
Mas a
vida, espertinha que só, me deu um cachorro lindo e feliz e mais companheiro do
que você foi nos últimos tempos. E a vida, mais espertinha ainda, o deu só para
mim. Mas devo pedir mais desculpas ainda, porque a raiva é de mim mesma na
verdade. De ser tão dramaticamente jogada aos amores e querer ser um, sendo
dois. Não posso negar minha sofreguidão canceriana. Mas também, acho que nunca
deixei de negá-la. Mas compreendo que não é fácil segurar a barra de estar
comigo. Eu mesmo às vezes bato na minha cara, às vezes a bicha fica louca, não é?
Eu sei. Mas a minha loucura foi cristalina. Foi sincera. Honesta. Fiel. No maior
ato de amor eu compartilhei toda minha insanidade, eu coloquei todos os meus
monstros na mesa. Desculpe se foi demais. Eu sou demais às vezes. Eu sei.
Gostaria
que tivesse continuado compartilhando seus demônios comigo, mas talvez, o seu demônio
fosse eu. Não foi minha intenção. Minha intenção
era só dançar com você. No fim, a gente nem dançou junto né. Mas eu dançava na
sala, na sacada, no quarto. E dançava com você, mesmo que ali não estivesse. Depois
por um tempo, ainda continuei dançando por nós. Hoje já ando dançando só para
mim mesma. Mas a raiva é um sentimento tão contraditório a todo o amor que
existe em mim que não dá mais para manter essa sofreguidão.
Nosso antigo
apartamento já não tem mais nada que conta nossa história. O computador pifou
antes de eu ver nossas fotos. Os móveis se separaram. Tudo se foi. A cidade já
não é mais a mesma. Os sons que escuto ao acordar já não são os que
costumávamos ouvir. Os dreads se foram e com eles três anos de histórias
nossas. Acho que as pulgas que infestaram a nova casa e começaram a pular nos cabelos,
me fazendo cortá-los na raiz, foi a vida dando um tapinha nas minhas costas, me
olhando nos olhos e me mostrando que o caminho agora é novo, deixe então as
velhas madeixas. Deixe tudo ir. Se dispa de você mesma. Se esvazie e se deixe
encher de novo. Faça novas histórias enquanto o cabelo cresce. Vamos crescer
juntos, lentos, mas constantes. Vamos cuidar para que cresçamos fortes e cheios
de brilho.
Continuo pedindo desculpas, por que também não é justo deixar de
lembrar que tivemos doces momentos, que rimos muito, que nos divertimos com nós
mesmos, que éramos felizes e engraçados, mesmo depois de tanto tempo sóbrios. Como
não se lembrar de nossa incrível viagem para as terras do nunca que nunca
esquecerei. Mesmo com a falta das putas das fotos que não cheguei a ver e que
entreguei para o universo. Um dia será tempos de revê-las e elas voltarão sem
esforço, como uma folha seca na correnteza. Os seriados que vimos inteiros
juntos. Nossas diversas casas. O tempo que tivemos um lar. Os abraços, os
chamegos, os cheiros. Nossa coleção de post-its com constatações. Manoel de
Barros. O cheiro do café todos os dias pela manhã. A televisão que você ouvia
tão alto e que eu sempre abaixava e que você depois aumentava. Nossas palas de
ipas em dias rotineiros. Seus cachos. O mequetrefe. E coisas que me deixam
saudosas por eu não me lembrar mais. E que aos poucos vou lembrar menos e menos
e menos. Como uma luz cênica que aos poucos se esvai. A luz do nosso palco
apagou e hoje preciso fechar as cortinas, pois nosso espetáculo saiu de cartaz
por incompatibilidades de gênios dos atores principais.
Também preciso te agradecer,
pois só assim pude seguir meu caminho e fechar uma grande ciclo de vida. Fico feliz
de perceber que consigo fechar ciclos e concluir todas as grandes metas que me
imponho. É claro que a vida dá uma ajudinha. Mas você também deu. Talvez, se você
tivesse ficado, eu ainda estaria aí e nenhuma das coisas grandiosas que me
aconteceram esse ano, teriam sequer existido e apesar de ainda estar colando
meus pedaços eu sinto que estou exatamente onde deveria estar. Eu e meu
cachorro.
Não sou de expor as coisas dessa maneira, mas isso tudo estava
travando minha criatividade e babe, eu realmente preciso escrever, eu preciso
organizar toda a literatura que está bagunçada em meu estômago e criar frases
que tenha sentido, parágrafos que tenham coerência entre si. Era preciso
liberar palavras antigas, pois as novas andam sem espaço. Liberei a casa, a
cidade, o cabelo, as palavras. Liberei eu mesma de você. Por que quando o sol
voltar, trazendo a primavera, eu quero colocar meus vestidos coloridos, minha
sandália verde e sair de mãos dadas com a vida que pulsa. Preciso de espaço
para esse pulsar todo que existe em mim.
E por fim, da próxima vez, não esconda
seus demônios. Não esconda se tiver sentimentos por outro alguém. Não deixe de
ser sincero. A mágoa da mentira e da omissão é sempre mais pesada. Acho que
apesar de todos os meus defeitos e loucuras, sempre te dei espaço para me dizer
tudo que estava dentro de você. Eu aguentava. Minha fragilidade é a minha maior
fortaleza, pois nela extravaso o peso da vida e sigo sempre forte para aguentar
os trancos que ela me dá, mesmo que as vezes eu pare um pouco para respirar.
Mas
faz assim, sigamos a vida, sempre sabiamente e sem medo de nossos monstros, e
um dia a gente se encontra sem querer e toma uma bem gelada, enquanto
lembraremos docemente de nossas manias infernais, das loucuras que nos
irritavam e até as tristes histórias serão lembradas com amor, pois quando
todos os sentimentos acabam, restam as histórias e a nossa um dia será lembrada
com um sorriso de canto de boca enquanto brindamos o fim de uma era com o
tilintar dos copos americanos em algum bar de beira de esquina.
Enquanto isso,
sigo com minha terrível mania de amar, mesmo que ainda não haja forças
suficientes para mergulhar no cheiro de outro alguém, apesar de já querer existir
um outro alguém, que de certa maneira sempre existiu. Mas ainda caminho pelas
ruas da indiferença. É estranho ser indiferente. Uma canceriana indiferente que
anda tentando não se apaixonar de novo. Ainda não sei como lidar. Eu era um
balde rosa pink cheio de água pura. Um balde que mataria nossa sede por muito
tempo, até que ele caiu no chão e quebrado levou toda a água pelo ralo de uma
vez. Emergi como que de águas profundas, já quase sem fôlego e chegando em
terra firme, já não havia água, já não havia balde, já não havia rosa pink e em terra firme fiquei sem
chão, no vazio de minha ingênua existência.
Engraçado como te amo, sem te amar
mais. Engraçado como te quero sem te querer mais. Engraçado estar explodindo no
vácuo. Talvez assim veio o big bang. O universo sofrendo com sua grandeza vazia
explodiu em si mesmo a fim de se dividir e ter com quem compartilhar a
infinitude da vida. A agonizante infinitude da vida. A doce agonia de viver
explodindo pedaços dentro de nossos universos particulares.
Aos poucos, com o
caminhar contínuo o passado vai ficando pequenino, pequenino e mesmo que ainda
possamos vê-lo ele não poderá nos fazer mais mal nenhum. Obrigada. Quero te
chamar te querido, mas ao mesmo tempo não quero admitir que apesar de tudo você
é um querido. Obrigada então querido e desculpe se tantos lerão esse texto
antes de você saber que sequer existe. E tantos saberão que falo de você e
talvez eu faça você passar por situações estranhas por causa disso, mas ainda
estou te mantendo longe. Ainda estamos nos mantendo longe não é? Mas a
primavera está logo aí. Que você possa sorrir junto aos ipês amarelos enquanto
eu brinco com as ondas quentes do mar à procura de um amor livre que goste de
cachorros.