Apareça e quando chegar não se importe em lavar
as louças ou secar os pratos. Não precisa tirar os sapatos, só porque eu tirei
os meus, mas se quiser ficar descalço jogue as meias em qualquer canto e conte-me
seus desassossegos.
Apareça e quando chegar finja que não
percebeu a torneira quebrada, o tanque que virou pia ou a sujeira do fogão. Não
note os móveis sem nexo e as fronhas que não combinam, fale sobre seus amores,
sobre suas dores e sobre aquela teoria de conspiração alienígena que descobriu
semana passada.
Apareça e quando chegar não repare no
cachorro cheio de terra batida e que deixa caminhos de areia pela casa. Não me
dê dicas de como me livrar das pulgas, nem me fale daquele shampoo que seu
veterinário indicou para seus cães. Apenas puxe a cadeira e me presenteie com
um suspiro de vida que pulsa.
Apareça e quando chegar não fale sobre os
papéis que preencheu no trabalho, ou sobre o trânsito que estava estranho para
uma quarta-feira. Mostre-me seus rabiscos, seus escritos, seus desenhos. Conte-me
sobre o abstrato retratado em um antigo quadro.
Apareça e quando chegar não entre de
imediato. Deixe-me guia-lo por entre os caminhos escuros de mato profundo e me
tire para dançar no breu do silêncio, enquanto os vaga-lumes saboreiam a noite
conosco.
Apareça e quando chegar não reclame da crise, não discuta religião,
não me conte sobre a frente fria que vem chegando. Escutemos, ao invés, uma
música estranha, completamente nus.
Apareça e quando chegar olhe nos meus olhos,
faça silêncios constrangedores e me dê longas explicações sobre o porquê da fragilidade
da vida ou sobre as transformações cósmicas e energéticas que pairam sobre nós.
Apareça e quando chegar me dispa primeiro com
seus olhos, depois arranque toda a roupa de meus pensamentos e deixe minhas
palavras nuas e arrepiadas.
Apareça
e quando chegar não peça para eu fazer o jantar, mas se quiser comer meus excessos,
basta me desembrulhar.
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