quarta-feira, 16 de abril de 2014

Ode ao Tempo ou qualquer coisa assim

Havia um tempo que não existia barulho
Mais do que isso, havia um tempo em que não havia som
Era tudo massa amórfica. Era tudo breu
Não havia você e não havia eu
Era o tempo que o mundo, pertencia ao mundo
E não havia portas para se fechar

Houve um tempo que não havia gente
E a gente que havia não era gente como a gente
Havia gente que não destruía
Havia gente que se cuidava e tirava piolho de sua gente
Houve um tempo com gente bonita assim.

Havia um tempo em que se conversava na rua
De porta aberta e cadeira de balanço
Nesse tempo havia gritos de crianças, corda e peão
A rua era segura e a gente engasgava com bala lisa e colorida
Tinha futebol de botão e jogo de bola com a mão

Havia um tempo que existia avô e avó
Existia empinar pipa feita de saquinho de plástico
Existia fazer bolha de sabão com talo de mamona
Nesse tempo havia horta e pé que dava fruta fresca
Havia passarinho cantando na gaiola
E o velho cachorro fugindo pro campinho de futebol

Houve um tempo que havia silêncio
Houve um tempo que barulho era brincadeira de criança na avenida fechada pro domingo
Existia vizinho e existia amigo
Existia irmão e existia boneca que o irmão jogava na parede
Existia casa cheia e existia deitar no chão da cozinha
Nesse tempo não havia piso no corredor
Só cimento e céu aberto

Depois houve o tempo de crescer
E de quem sabe tentar vir a ser
Houve um tempo que havia vontade de renascer
E tudo conhecer
Eita tempo bom
Esse tempo de desenvolver

Mas aos poucos o tempo foi comprimindo
E o peito oprimindo
Houve o tempo da chuva
E o tempo da chuva pareceu aumentando
Houve um tempo de mudança
Não era mais o ser
Existia só o fazer, sem às vezes saber porquê

Depois tudo ficou cinza
Apesar do belo céu que aqui tinha
Era tudo azul cor de mar
E tinha poeira sempre a voar
Existia ipê roxo no verão
E sol que queimava sem perdão

Não havia rima, pois não havia fala
Não havia boca, não havia nada
Tinha só mala por desfazer e casa que sem móveis
Ecoava, muda, o relógio antigo de um andar qualquer

Houve um tempo que o barulho era música
A buzina instrumento
O ônibus percussão
Nesse tempo o som era alto e o caminho era longo
Mas tinha cerveja na Augusta
E funk como le gusta

Havia um tempo que era o tempo de hoje
Tempo de agora
Tempo de não poder mais andar na rua
Tempo de não ser respeitada por não fingir ser burguesia
De ser massacrada por andar a pé

O tempo de hoje não tem mais tempo
Para o próprio tempo
A vida escoa a qualquer momento
Compre roupa ou compre amor
Mas compre sempre pra não perder seu valor

Houve um tempo que ainda se estende
Onde sombra de árvore é mito de livro antigo
Onde arte é sinônimo de riso
Onde ser feliz é sinônimo de fio metal
Onde amar já está fora de moda
E plantar é sinônimo de fome

Havia um tempo que a vida era leve
Não havia moda, não havia greve
Houve um tempo que importava o ser
Houve um tempo que não importava ter

Houve um tempo que começou a ser tempo
De mudar esse tempo que não nos dá tempo
Houve um tempo que não querer mais se vender
Pra talvez poder voltar a vir a ser
Houve um tempo que era agora

E esse tempo, por favor, não se demora.

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