quarta-feira, 16 de abril de 2014

Cão Só



         Era uma tarde quente. Covardemente quente. Numa cidadezinha esquecida, que fazia aniversário. Como era feriado, não havia muitas opções para alguém como ela. Aproveitou o tédio do dia e foi pra uma casa que andava vazia, vigiada apenas por um cão carente de vida. 
        Naquele momento queria apenas a companhia dos animais, afinal, eles além de não julgar os humanos, ainda não faziam perguntas. O que era mais incrível naquele momento, onde tantos questionamentos lhe eram feitos. Colocou os óculos escuros na tentativa de não ser reconhecida, ajeitou os fones e ligou o volume da música ao máximo, na tentativa de não reconhecer chamados, e em seus chinelos velhos deixou para trás as indagações de uma vida toda. 
     Parou no caminho para comprar cervejas e ao abrir a primeira latinha se arrependeu de não ter comprado mais. O sol era penoso e o caminho era longo. Pensou também que naquele momento apenas uma pessoa seria capaz de acompanha-la naquele momento e compartilhar o som libertador de uma latinha se abrindo para o mundo. Mas sua companheira de cervejas argentinas roubadas em hipermecados, estava longe tentando ganhar a vida, ou pelo menos algum dinheiro, ou talvez, queria apenas se reconhecer em alto mar. 
      Naquele momento estava sozinha e estava vazia. Não sentia nada, não tinha estímulos, o calor fritava seus miolos e não a deixava pensar. Mas pra que pensar? Isso só faz cair cabelos. Isso só leva a vícios mundanos. Chegou, finalmente, à casa vazia. Cumprimentou o cachorro, mais solitário que ela mesma, compartilharam o momento estranho e depois foi até a geladeira; guardou umas latinhas, abriu outra e teve a certeza que deveria ter comprado mais pão líquido para sustentar seu dia. Sentou-se e acendeu um cigarro, mas não fumou com prazer. Ninguém é tão livre quanto aparenta ou imagina ser. Apagou-o no cimento duro e cinza. Olhou os religiosos saindo da igreja e desejou ter metade da fé que eles tinham, mas depois desistiu da ideia. Eles eram, ainda menos livres, do que ela mesma. 
      Resolveu deixar a vida passar, esperando um telefonema que não aconteceria nunca. Pensou em como as coisas acontecem e mais uma vez não entendeu o sentido das coisas. Queria raciocinar sobre a vida que estava prestes a começar, mas nenhum pensamento grudava em sua cabeça. Teria feito a coisa certa? Não sabia, não havia como saber. Mais uma vez estava por sua conta e risco. Mais uma vez os amigos conquistados tinham sido deixados para trás e os antigos estavam ocupados demais com suas vidas construídas, enquanto esteve longe. Não os julgava. Não se pode julgar uma vida por sua continuidade inevitável. Lembrou-se de uma grande figura deixada recentemente no passado e de como as relações simplesmente um dia acabam. Simplesmente perdem a razão de ser, o motivo de existir. Mas como tudo em seu dia, não havia muito o que fazer a respeito. Quando algo perde o sentido, não nos resta nada mais do que seguir em frente. 
       Desejou mais uma vez ter fé, mas logo em seguida desistiu e levou o cachorro para passear. Eles também merecem momentos de liberdade assistida. No caminho, pensou na paixão que não teria dado certo e no amor que nascera tarde demais. Não culpou a vida, nem os caminhos opostos, mas desejou algo que não sabia o que era e desejou que esse algo enfim, desse certo. Estava cansada de ir e vir. Estava cansada de procurar o que não chegava. Desejou que sua companheira de cervejas fétidas estivesse ao seu lado, ela entenderia sua incessante busca por algo ainda incompreensível. No fim, entendeu que era tudo drama de sua alma imoral e tomou o rumo de casa. O rumo das indagações e dos questionamentos, que nem ela, sabia a resposta.



(2008)




2 comentários:

  1. wow... em 2008 estava passando pelas mesmas coisas... é incrível como mesmo longe, nossas experiências (com suas particularidades) se assemelham muito! que loco isso! saudades de vc!

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  2. momento de transição total!! é bem loco isso mesmo! sinergia total!! muitas saudades Dan!! quero visitá-los logo!!

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