quarta-feira, 16 de abril de 2014

Quem?



            Apesar de ter chegado ao trabalho na mesma hora de sempre, trajando as mesmas roupas rotas de sempre e com seu rosto vermelho, de quem enfrentou o mesmo longo caminho de sempre, Augusto olhou a amiga e perguntou o que lhe havia acontecido.  Você não me parece bem esta manhã, comentou. 
               Flora o olhou um tanto perplexa pela percepção, e respondeu que realmente não se sentia confortável consigo mesma naquele dia. Ontem me questionaram muito e não soube como reagir, continuou, ainda não sei a resposta e não saber responder me fez pensar como ando cega ultimamente. E o que te questionaram que lhe deixou tão aflita? Perguntaram-me, o que eu sou. 
          Augusto silenciou por um instante, queria entender se realmente sabia o que acabara de acontecer, mas exaltado pela ansiedade da dúvida não se conteve. Como assim? Você é a Flora! Minha amiga, companheira de trabalho, casada com o Rê, mãe do Gabriel. Não, disse Flora, essa é quem sou eu. Eu sei quem eu sou, tenho nome, sobrenome, um documento que comprova que sou pessoa física e até um outro que comprava que sou pessoa jurídica também. Tenho endereço, família, origem e tudo isso são fatos. Mas o que sou eu? O que sobra depois que todos os documentos estão expostos na mesa? O que resta depois que me dispo de tudo que é socialmente obrigatório? Quando as roupas, os brincos, o teto, a loucura da cidade, o emprego, as tarefas, as obrigações caem, o que fica? O que fica em você quando nada te atrapalha a ser o que você é? Somos carne, músculos, veias, vísceras, motricidade e o que essa carne, ossos e veias fazem todos os dias com sua parte não palpável que os sustentam conscientes e ocupando espaço no vazio? O que esse corpo faz no próprio vazio criado por ele mesmo? E que vazio é esse que preenche tudo, que preenche existências inteiras espaço afora? O que sou eu quando não estou tentando ser ninguém? O que desejo quando nada se tem a desejar? 
           Flora, nesse instante parou abruptamente. Seu olhar fixo na tela do computador, ainda desligado, e suas mãos firmes segurando a bolsa, a deixavam com uma aparência velha e preocupada. Augusto não cogitou dizer, sequer, uma palavra. Da ultima vez fizera estragos suficientes. A amiga então relaxou ao som de um suspiro. Pousou a bolsa sob a mesa, respirou fundo três vezes e prosseguiu. Havia um tempo que eu sabia tudo e que tudo era mais claro e simples. Sabia quem eu era, o que era. Sabia das emoções das quais era feita, do lugar que ocupava no mundo e das energias que de mim saiam. Tinha potência e sabia como transformar qualquer situação, mesmo que difícil, em potência criativa, criadora. Tinha brilho nos olhos, tinha malícia de conduzir a mim mesma nesse vazio cheio de formas. Agora, já não me reconheço mais na potência que eu tinha. Hoje sou outra e não sei em que parte do meu caminho deixei de reparar em mim mesma, de olhar para minha anti-matéria etérea e reconhecer seu lugar no vazio do espaço que a preenche. Entende? 
         Augusto já não tentava mais entender o que se passava e apenas perguntou, mas quem foi que te questionou coisas tão imateriais assim? Fui eu Augusto. Fui eu. Tão logo parou de falar, ligou o computador e começou a trabalhar. Afinal era a sua rotina de cada dia que, por enquanto, sustentava suas indagações tão imateriais, como descreveu o amigo ainda boquiaberto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário